Desventuras de uma manhã



  Numa noite, já cansado de mais um dia de vida, fui me dirigir aos meus aposentos de descanso, certo de que, ali, eu seria compensado da várzea que tinha sido meu dia. Bem, não foi bem como imaginei no momento, pois nas horas que se sucederam, posso dizer que eu tinha enfiado o pé na jaca. Tudo começou (ou terminou, depende do ponto de vista) quando inadvertidamente meu pé esquerdo ganhou vida, e foi deitar na cama primeiro, se deslocando numa energia negativa tamanha que eu senti que a coisa ia ficar preta. Mesmo sendo de praxe dar azar quando se levanta primeiro com o pé esquerdo, deitar tava dando na mesma droga. Um pé estava selando meu destino. Ainda meio sentido, resolvi ganhar a confiança da minha mente, para depois enganá-la, dizendo que tudo não passava de um mal entendido. Já com a autoestima na extratosfera, fui dormir, bem faceiro, confiante numa ótima noite de sono e belo despertar pela manhã. Me deitando, o sono me deu um esmurro que me fez parar lá no 5° sono. Nesta altura, cheguei no paraíso dos cordeirinhos. Não precisei nem contá-los. Já no mundo-do-faz-de-conta, sonhei que tinha salvo o planeta Terra. Modesto este sonho....Enquanto estava num mundo paralelo, ouvi um sininho. Muito parecido com do Papai Noel. Mas aí fui esperto e descobri que tava na Páscoa. Foi então que o barulho foi ficando perceptível. O despertador. É isso. Mas, de uma hora pra outra, a coisa ficou possessa. O que eu ouvi logo em seguida foi uma metralhadora. Me sentia na linha de frente contra os nazistas. O relógio, desregulado, emitia sons de granadas explodindo em tempos regulares. Já dava pra ver o Hitler. O barulho foi subindo, e subindo. Que logo começou a aumentar..., e aumentar; e eu ali, firme na paçoca. Não tinha o que segurasse aquele bicho. O barulho começou, então, a dar ares apocalípticos. De granadas pulou pra bombas atômicas. Aí eu vi que a coisa fedeu. "Esta droga toda vai explodir", pensei eu. Neste instante toda a minha vida começou a passar na minha frente. Foi então que eu relembrei do despertador que me empurraram a preço de banana, e que eu, com uma inteligência de macaco, comprei. Começou a me vir uma culpa, de que se não o tivesse comprado, minha vida estaria bem melhor. Enquanto curtia este meu momento "que merda eu to fazendo", acordei. Como podem ver, de uma maneira não muito calma. Em seguida, sentei na cama, e quando fui me levantar,um movimento totalmente involuntário me fez colocar, de novo, o pé esquerdo antes do direito. Ai,ai,ai! Reza a lenda que levantar com pé esquerdo dá azar. Não que eu seja supersticioso. Eu sou é precavido! Vai que o negócio pega mesmo! Assim que levantei a carcaça, fui colocar o chinelo pra dar uma banda pela casa, ir até o banheiro, ir até a cozinha etc. e tal. Comecei pelo básico: lavar o rosto e fazer algumas necessidades intrínsecas à nossa natureza animal. Me deslocando ao banheiro, não vi que o tapete me deu um tacape, privilegiado por um ângulo bizarro, levantado exatamente na frente do meu pé, adivinhem, esquerdo. Foi num ato de reflexo que eu pulei e me esquivei, uma manobra ninja. Tudo graças ao meu pé direito (pé da sorte).
  Passado a armadilha do destino, cheguei, inteiro, ao banheiro. Com a cara amassada de sono, fui logo lavar o rosto. Como a água estava estupidamente gelada, joguei tiquinhos na cara: Dois pingos no nariz, três nas orelhas, e quatro no que sobrou. Satisfeito em não ter congelado o rosto, me animei a tomar um banho bem quente, daqueles de lascar o couro. Pois então me preparei, todo faceiro. Mas, ao entrar no box do chuveiro, uma cãibra na perna direita, do nada, fez eu pisar com o pé esquerdo. Eu até notei a encrenca, mas já não adiantava chorar o leite derramado. Com o coração na mão e o pulmão no pé, quase sem vida e sem fôlego, me desloquei, num ato de fé, a ligar o chuveiro. Parece que a partir daí tudo ficou em câmera-lenta. Eu vi tudo, em todos os detalhes. Gotas de água, amigáveis por natureza e ansiosas por me molhar, faziam gestos não tão amigáveis para mim. No começo eu não entendi. Mas logo veio a resposta, na forma de gotas, não de água, mas de gelo. Tinham se tornado impiedosas, frias de coração. Um frio que tinha eu como alvo. Elas não queriam me molhar. Queriam era me envolver com seus braços longos e congelantes. Apercebido do desastre iminente, fiz movimentos a la Matrix, desviando gota a gota. Mas vinham mais, não estavam satisfeitas. E eu via todas elas. Estavam com cara de fome. Enquanto mais me perseguiam, mais eu fugia, desesperadamente, em movimentos desconexos e involuntários. Até que, sem perceber, tornei-me parte do ar . Virei vento. Uma brisa que deslizava por entre gotas raivosas e infelizes. A minha epopeia só haveria de terminar no instante que a água seria cortada. Não haveria mais luta. Não haveria mais sofrimento. Seria só eu e eu. Sem banho, mas feliz. Foi neste instante que aprendi uma valiosa lição, a qual levaria para o resto da minha vida: Antes só do que mal acompanhado. Em outras palavras: Antes sem banho do que um banho mal tomado.
  Apesar de ainda sem banho, o sebo de uma noite suada e mal dormida não me impediram de provar os saborosos quitutes matutinos que ainda teria que fazer. Mas quando fui ver, só havia ovo, um mísero ovo. Agora só faltava o detalhe, agora só faltava o óleo. As muitas frituras me vinham à cabeça. Me vinha a imagem do incomível, do improvável. De ver do nada saírem panquecas e omeletes. Pois bem, então fui atrás do óleo sagrado, que fazia milagres culinários. Fui logo jogando na panela esta coisa pegajosa, de gosto horrível, mas que encharcaria meu paladar. Na minha frente se formou uma piscina, que banharia toda e qualquer substância que se aventurasse em suas águas quentes e tropicais. Logo começou o processo intrincado da fritura. Muitas reações químicas inimagináveis proporcionariam a beleza da vida, a mais formidável das refeições: o ovo frito, o qual detinha o poder de me renovar de todas as infelicidades que me tinham antecedido até então, o poder de não passar fome até vir a fome.
   E então pensei, e ficou claro: é claro que um ovo não ia salvar meu dia. Teria que ser "o ovo". O ovo de Colombo, talvez. Até porque (e não sei porque) omelete de ovo com ovo não seria omelete. Eu vi que até o momento a coisa andava desandando na maionese. Talvez por isto eu tive, num lampejo de Einstein, a ideia de sair de casa, sair deste ambiente que queria se vingar de mim por alguma que....sei lá. Sair, la fui eu. Meu pé não me sacaneou desta vez, meus músculos me obedeceram a andar direito. Pois bem, como teste de um incauto, no começo andei em círculos por aí até porque não sabia pra onde ir. Então, apareceu, assim na minha frente, vindo do nada, uma pedra. Sei lá, parecia um meteorito, me fez um tropicão daqueles de cair caído mesmo. Não tava entendendo. Eu saí de casa decentemente, com o pé bom. Mas daí percebi que meu dia tava indo pras cucuia com pé, orelha, dedo, direito ou esquerdo. Então vi que tava uma várzea já. Nem esperei tirar a prova e andar um pouco mais pra crer e ver, ou pra meu azar, ver pra depois crer (que já seria tarde). Decidi voltar pra minha casa , ordinária mas ainda minha. Só o que me separava deste meu objetivo era uma faixa grossa de asfalto em que poderia se passar seguradamente por linhas brancas até o outro lado. Aquele caminho a la Mágico de Oz instigava meus sentidos de direção. Eu fui meio que no soco, indo de qualquer jeito. mas por sorte do jeito certo. É...mas a sorte se revezou com o azar, e teve uma inconsequência no meio do caminho, no meio do caminho, outra pedra. Mas que droga! De onde brota essa coisa. Aí já viu né, outro tropeço daqueles, me faz voar que nem uma andorinha vesga, vem o caminhão da Coca-Cola e......BAM! Me veio um clarão, vi umas coisas voando ......BAM! De novo. Era o estalo de despertar de uma noite mal dormida. Me veio um súbito bocejo, entrou um marimbondo na minha boca. e ......BAM! Acordo de novo....Só sei que essa ladainha de acorda, vai, acorda, não vai, foi indo....até que na decima terceira vez, acordo e sinto o dom da vida, vendo então que o mundo real para mim já era uma realidade.

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